" Chuva. Torrentes de água escura. E um cheiro. Enjoa-doce. Como rosas velhas na brisa. Mas o pior de tudo era carregar dentro de si a memória de um homem novo com boca de velho. A memória de uma cara inchada e de um sorriso desfeito e invertido. De um charco líquido claro a alastrar continuamente e de um bolbo nu reflectido nele. De um olho raiado de sangue que se abrira, passeara e depois fixara o seu olhar em si. Estha. E o que fizera Estha? Olhara para aquele rosto amado e dissera: Sim.
Sim, era ele.
A palavra a que o polvo de Estha não conseguia chegar: Sim. Aspirar parecia não valer a pena. Estava alojada ali, no interior de alguma prega ou estria, como um fio de manga entre molares que não consegue soltar-se.
Talvez seja verdade que tudo pode mudar num dia. Que umas escassas dúzias de horas podem afectar o curso de toda uma vida. E que, quando assim acontece, essas poucas dúzias de horas, como despojos de uma casa queimada - o relógio carbonizado, a fotografia chamuscada, a mobília ardida -, têm de ser ressuscitadas das ruínas e examinadas. Conservadas. Explicadas.
Pequenos acontecimentos, coisas vulgares, destruídas e reconstituídas. Investidas de novo significado. Subitamente tornam-se nos ossos descorados de uma história.
Ainda assim, dizer que tudo começou quando Sophie Mol chegou a Ayemenem é só uma maneira de ver as coisas.
De igual modo se podia argumentar que tudo começou há milhares de anos. Muito antes dos marxistas chegarem. Antes dos britânicos tomarem Malabar, antes da Ascendência Holandesa, antes da chegada de Vasco da Gama, antes de Zamorin conquistar Calecute. Antes de três bispos sírios com vestes púrpura e assassinados pelos portugueses terem sido encontrados a flutuar no mar, com serpentes marinhas enroscadas nos troncos e ostras enoveladas no emaranhado das barbas. Poder-se-ia argumentar que tudo começou antes de o cristianismo chegar num barco e se infiltrar em Kerala como chá de uma saqueta.
Que tudo começou realmente na época em que as Leis do Amor foram feitas. As leis que estipulavam quem devia ser amado, e como.
E quando ."
O Deus Das Pequenas Coisas, Arundhati Roy