terça-feira, 17 de abril de 2007

" Chuva. Torrentes de água escura. E um cheiro. Enjoa-doce. Como rosas velhas na brisa. Mas o pior de tudo era carregar dentro de si a memória de um homem novo com boca de velho. A memória de uma cara inchada e de um sorriso desfeito e invertido. De um charco líquido claro a alastrar continuamente e de um bolbo nu reflectido nele. De um olho raiado de sangue que se abrira, passeara e depois fixara o seu olhar em si. Estha. E o que fizera Estha? Olhara para aquele rosto amado e dissera: Sim.
Sim, era ele.
A palavra a que o polvo de Estha não conseguia chegar: Sim. Aspirar parecia não valer a pena. Estava alojada ali, no interior de alguma prega ou estria, como um fio de manga entre molares que não consegue soltar-se.
Talvez seja verdade que tudo pode mudar num dia. Que umas escassas dúzias de horas podem afectar o curso de toda uma vida. E que, quando assim acontece, essas poucas dúzias de horas, como despojos de uma casa queimada - o relógio carbonizado, a fotografia chamuscada, a mobília ardida -, têm de ser ressuscitadas das ruínas e examinadas. Conservadas. Explicadas.
Pequenos acontecimentos, coisas vulgares, destruídas e reconstituídas. Investidas de novo significado. Subitamente tornam-se nos ossos descorados de uma história.
Ainda assim, dizer que tudo começou quando Sophie Mol chegou a Ayemenem é só uma maneira de ver as coisas.
De igual modo se podia argumentar que tudo começou há milhares de anos. Muito antes dos marxistas chegarem. Antes dos britânicos tomarem Malabar, antes da Ascendência Holandesa, antes da chegada de Vasco da Gama, antes de Zamorin conquistar Calecute. Antes de três bispos sírios com vestes púrpura e assassinados pelos portugueses terem sido encontrados a flutuar no mar, com serpentes marinhas enroscadas nos troncos e ostras enoveladas no emaranhado das barbas. Poder-se-ia argumentar que tudo começou antes de o cristianismo chegar num barco e se infiltrar em Kerala como chá de uma saqueta.
Que tudo começou realmente na época em que as Leis do Amor foram feitas. As leis que estipulavam quem devia ser amado, e como.
E quando ."
O Deus Das Pequenas Coisas, Arundhati Roy

7 comentários:

Anónimo disse...

muito bem, lizzie, acertas num dos meus livros favoritos... e que paciência, digitar esta longa passagem (só a prima Sophie te falhou, com um h a mais). já leste o sol dos scorta? é uma bela saga familiar, não muito longa, contada com o coração. acho que ias gostar.

Lizzie disse...

Um dos melhores livros que já li, este Deus das Pequenas Coisas. O Sol dos Scorta (Gaudé?) já o tive na mão e não o comprei, mas para a próxima terei em conta a tua recomendação.
Confesso que a minha paciência é infindável quando realmente gosto de alguma coisa, e muitas vezes excessiva.

CeLiNa disse...

É o livro que tenho agora na minha mesa de cabeceira! :)
Também estou a gostar muito, cada vez mais.
Bjks

Anónimo disse...

sim, é o livro do gaudé, prémio goncourt em 2004. e, já agora, recomendo-te um booker genial: desgraça, do coetzee (que também é nobel). muito, muito bom.

Lizzie disse...

Brisa, depois de ler dir-te-ei o que achei!

Lizzie disse...

Olá celina, bem vinda! Tenho a certeza que vais gostar do livro...

Prunella la Fuente disse...

Um dos meus preferidos.

"Pequenos acontecimentos, coisas vulgares, destruídas e reconstituídas (. . .)"

Sempre a surpreender [pela positiva, of course]

Bisou *