quinta-feira, 3 de maio de 2007

Uma estrada -1/5/2007

Era um início de tarde. Respiras fundo e agarras-te à coragem que já tiveste. Sabes que erraste. Que as pessoas mudam. Mudam por muitas razões, mas sobretudo porque acreditam erradamente que se mudarem quem amam as vai amar ainda mais.
Sabes que não podes adiar mais a viagem. Há já muito que o mundo inteiro, as músicas que ouves sem dignidade, as fotografias sem cor que afinal te são dispensáveis porque as imprimiste com toda a precisão naquilo a que rejeitas chamar “memórias” e até os teus amigos te dizem que está na hora de te ergueres, que tens de encontrar a estrada que te traga de volta a ti. Até agora foste-te remediando com trapos, foste vivendo do prazer retardado das tuas lembranças, sugando todas as noites um bocadinho dos sorrisos que um dia enfeitaram a tua cara e os teus dias. Mas hoje descobriste que o teu coração já não te fala e entras em agonia.
Qualquer coisa está irremediavelmente errada, como um pulmão ferido de vício, que respira fábricas de fumo espesso, que nunca cheirou a humidade de um bosque, de uma flor, do mar. O passado espreita-te como um menino birrento, de costas voltadas. Faz-te uma chantagem surda, como se esperasse impacientemente a devolução da tranquilidade que nasce das coisas resolvidas e em troca de nada. Tens de partir. Mesmo que nunca possas, nem sequer a ti, explicar o que terá acontecido, se a culpa é só tua ou de mais alguém. Mesmo que nunca consigas encaixar em lado nenhum esse pedaço da tua vida e ele esteja condenado a vaguear para sempre pelo resto de todas as tuas memórias, como um defunto perdido entre dois mundos. Tens de partir.
Sabes que o tempo já disfarçou a verdade com outras verdades. Puseste as memórias feridas de saudade num lugar a que nenhum ser humano poderia chegar, mas sabes também que o tempo te levará cada vez para mais longe e que, mais tarde ou mais cedo, conseguirás pegar nelas a uma distância segura, sem te deixares magoar.
Partes. Sem mapa e sem datas. Chove uma chuva fria, o nevoeiro e as lágrimas cegam-te o caminho inteiro e a tristeza, nem por um segundo, larga as mãos da tua garganta.
Era um início de tarde.
E o teu.

16 comentários:

aframboesa disse...

A saudade fere, de tanta amargura.
Resta a doce lembrança.

Bisou *

Maria Ostra disse...

Ui...
Antes de partir há que ir ao fundo...para não haver a tentação de se olhar para trás...mas isto, digo eu...

Lizzie disse...

Frambú,
A saudade fere-nos e também nos engana.

Maria Ostra,
Não te entendi (sobretudo nesse teu "Ui..."). Chegar ao fundo? Mas afinal o que é o fundo?

Anónimo disse...

é preciso partir para retornar. falar baixinho com a saudade e transformar a dor em suave nostalgia. demora, mas é possível...
a imagem da tristeza não largar as mãos da garganta é perfeita. tens poesia dentro de ti, lizzie. além da amargura. não deixes escapar a primeira e troca a segunda por um sorriso, sempre que o consigas.
um beijo.

Maria Ostra disse...

o "Ui" é de memórias...minhas...
Ir ao fundo de nós, ao limite...

Lizzie disse...

Brisa,
Se me conhecesses pessoalmente acredito que entenderias a distância que existe entre o que sou e o que escrevo, mas eu não sou a melhor pessoa para falar de mim...

Maria Ostra,
O limite, o fundo... A personagem deste texto já lá esteve, agora é hora de "voltar".

Anónimo disse...

percebo que haja uma distância. há sempre. mas, para mim, tu és o que escreves e mais nada. o que depreendo de ti pode ser um erro completo... mas é um erro bonito.

Maria Ostra disse...

Exacto... :)
Até já!

jaZZmim disse...

Soubeste colocar-me nas tuas palavras, sem me conheceres, sem te conhecer...

É tão dificil partir quando há tanto ainda por dizer, por viver...

Lizzie disse...

Sim, é difícil...Como diria a minha amiga Prunella " As partidas nunca foram fáceis."
Bem vinda jazzmim...

Feijoeiro disse...

Grande post.Bem conseguido.Mto bem escrito.Boa abstracção de memória ou abstração...qualquer uma que seja.Genial!

Feijoeiro disse...

Correcção...Boa abstração de memória ou imaginação.

Lizzie disse...

Feijoeiro, obrigada rapaz! E então, o aquário não segue?

Feijoeiro disse...

está em stand "limbo"...nem tanto ao céu nem menos à terra.

Aestranha disse...

Escreves e descreves muitissimo bem!

Parabéns pelo blog.

Beijo

Lizzie disse...

Obrigada :)
E bem vinda, claro!
Beijo